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  • Rosangela Nieto de Albuquerque

Normose e práticas docentes: a esquizofrenia moderna


No mundo contemporâneo, a cada dia vivenciamos novos estilos de vida, diferentes propostas de relações interpessoais, posturas e comportamentos num paradigma voltado para um sistema de “normalidade”. Na vida e nos aspectos profissionais, surgem perspectivas que mexem com a identidade do sujeito. Observa-se, então, que na prática educativa o trabalho docente tem um significado bem mais compreendido quando adquire o significado do trabalho humano e, no processo desse trabalho, a atividade do homem opera uma transformação.

Acerca dessas construções, a prática docente ainda é sentida de maneira que os efeitos da ideologia de reprodução, que perpassam pelos sistemas educativos, estão gerando seres humanos distanciados de si mesmos, com dificuldades para assumir a sua própria autoria e fragmentados na sua própria história. E, quando esse sujeito tende a aceitar passivamente aquilo que o pensamento dominante, dentro da sociedade, vai impondo como desejável, como melhor, como correto… como normal… pode, então, provocar a normose. Nesse movimento de aceitação da normalidade, acontece muitas vezes a anomalia da normalidade, que promove a constituição de seres humanos doentios. E que doença é essa? De se negarem a si mesmos como sujeitos individuais e coletivos, de acharem que é normal que outros decidam por eles? Como assumir, então, aquilo que é esperado deles, pelos pais e pelos educadores?

Algumas práticas escolares têm sido geradoras desses processos doentios, no que diz respeito à construção da identidade de sujeitos individuais e coletivos. Portanto, esse novo conjunto de normas e padrões convencionais predominantes podem originar uma normose. Esta, que é uma patologia da normalidade, aponta implicações psicológicas e políticas e apresenta influências dos ambientes escolares, afetando o corpo, a visão, a linguagem, o espaço, a subjetividade e a identidade. Essas anomalias da normalidade, muitas vezes, são constituídas nas instituições escolares, produzindo o normótico, que também se originou na sua própria formação enquanto professor. É um ciclo continuado.

Normose e práticas escolares

Para Weil (2003, p. 23), a normose é uma normalidade doentia. E, certamente, existe uma diferença entre a normose e uma “normalidade saudável”, que se constitui num consenso, por exemplo: acordar e ir para a academia. Há também a normose e a “normalidade neutra”, por exemplo: jantar às 19 horas. A normose se caracteriza pelo comportamento padronizado pela cultura, que, geralmente, é aceito como normal pela maioria dos sujeitos, é apreendido por esses sujeitos, mas é construtor de um sofrimento.

Weil (2003) assim define normose:

A Normose pode ser definida como o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Em outras palavras, é algo patogênico e letal, executado sem que os seus autores e atores tenham consciência de sua natureza patológica (p. 22).

As características de um comportamento normótico, segundo Weil (2003, p. 23):

• São um hábito de pensar, sentir e agir. • São aceitas como normal por consenso social. • Têm natureza patogênica ou letal. • Têm gênese pessoal ou coletiva, mediante um processo introjetivo.

As práticas escolares e o processo de ensino-aprendizagem são, sem dúvida, uma prática social, que é determinada por um jogo de forças, interesses, motivações e intencionalidades, pelo grau de consciência de seus atores, pela visão de mundo que os orienta, pelo contexto em que essa prática se dá, pelas necessidades e possibilidades próprias de seus atores e próprias à realidade em que se situam.

Nesse contexto, é importante enfatizar que algumas práticas escolares, vivenciadas pelo docente, oportunizam, mesmo que silenciosamente, a difusão do processo de normose em que os sujeitos negam a si mesmos em seu agir, fazer e pensar, negando assim a sua própria história.

A escola, quando assume a postura de que os alunos e as famílias são clientes e apenas constrói uma lógica empresarial, esquece que é o espaço do encontro humanístico, um encontro de seres humanos, que aprender é construir sentidos, e, infelizmente, alguns docentes não oportunizam aos sujeitos que se encontrem em si mesmos.

Assim, sem que o sujeito tenha consciência dessa natureza patológica, ele é tomado pela normalidade, pelo cumprimento de normas, valores, conceitos, num sistema que vai forjando o seu pensar e agir, contextualizado pela maioria dessa determinada população e que muitas vezes leva a sofrimentos, doenças e até a morte. Nesse processo patogênico e até letal, as práticas escolares e docentes, do ponto de vista dos valores, impõem aos alunos uma verdade única, tecida pelo interesse político-pedagógico, muitas vezes camuflando a realidade.

Os alunos muitas vezes propõem outros caminhos nas discussões escolares, mas os paradigmas curriculares propostos engessam o processo educativo, o que é danoso para a construção do ser humano. Nas relações pedagógicas que negam os processos criativos e inovadores dos alunos e que induzem a respostas padronizadas, de interesse da classe dominante, essa atitude muitas vezes inviabilizará a construção de uma cultura de solidariedade. Observam-se, portanto, estratégias individualistas e competitivas, em vez da preparação de sujeitos coletivos e sociais.

Nessa linha de reflexão na qual as patologias se instalam, há autores que nomeiam esta normose de anomalia da normalidade, outros a chamam de esquizofrenia moderna, que forja sujeito e objeto, impondo a “normalidade”.

O próprio sistema já contribui para esse panorama ao impor aos docentes uma excessiva carga horária de trabalho, turmas superlotadas, às vezes planos de aulas prontos (como pacotes a serem cumpridos), em que o trabalho pedagógico de qualidade é quase impossível, ocasionando frustrações, o surgimento do desânimo e até doenças nesse docente. E, como justificativa, o discurso das instituições educativas é que a escola deve preparar o educando para o mundo competitivo.

Problema normótico nas escolas – A chamada esquizofrenia moderna

O temor de ser excluído, de ser rejeitado pelo grupo, de não ser considerado normal, de não ser visto como uma pessoa de bem no meio em que se vive.

Para Pierre Weil, a normose pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir que são aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Já para Jean-Yves Leloup, a normose é um sofrimento, a busca da conformidade, que impede o encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação. Roberto Crema afirma que uma pessoa normótica é aquela que se adapta a um contexto e a um sistema doente e age como a maioria.

Nesse contexto, identificar os possíveis problemas da normose nas práticas educativas faz-nos considerar que as escolas constituem-se a partir dos sujeitos individuais e a partir dos sujeitos coletivos que o sistema educacional forma, vários dos quais chegam a definir-se como sujeitos coletivos efetivamente (SILVA, 1996). Além disso, essas escolas também recebem seus determinantes advindos do contexto cultural e social no qual se encontram, ou seja, as escolas são constituídas a partir de uma condição de complexidade, em que se entrelaçam os fios do sujeito individual ao sujeito coletivo.

Leloup (2003) enfatiza que: “[...] a normose é um sofrimento [...]; É ela que nos impede de sermos realmente nós mesmos. O consenso e a conformidade impedem o encaminhamento do desejo no nosso interior” (p. 25).

Pode-se distinguir duas grandes categorias de normoses: as gerais e as específicas. As normoses gerais são caracterizadas por um consenso comum e são vivenciadas por toda a humanidade. No que tange a práticas sociais, pode-se analisar a aceitação do cigarro ou da fantasia da separatividade. As normoses específicas permeiam o consenso restrito a determinado grupo social ou cultural, nação ou população. Como exemplo, podemos pensar no uso de objetos de um determinado grupo social, como cadeiras, assentos, que os trabalhadores usam, proporcionando assim uma deformação na coluna vertebral.

No que tange à Educação, todos sabemos que o papel do professor é fundamental na formação do indivíduo e, também, na constituição de uma normose específica, pois perpassa pelas práticas escolares que, através de suas ações pedagógicas, podem desenvolver um sujeito individual e coletivo. São as relações de ensino-aprendizagem os principais elementos de construção desse sujeito, isto é, nas relações professor-aluno, conhecimento-conteúdo escolar, portanto na construção do saber organizado e elaborado, com base em uma determinada área de conhecimento.

Outra especificidade é a atual normose acadêmica, pautada na meritocracia produtivista implantada nas universidades e no sistema de avaliação do MEC, em que os instrumentos pontuam os pesquisadores e programas de pós-graduação. Essa corrida pelo título tem transformado, nas últimas décadas, docentes e alunos em verdadeiros normóticos — “É normal ter uma pós-graduação”—, assim essa busca desenfreada pelo título muitas vezes extirpa o sentido da verdadeira busca por conhecimentos e pensamentos realmente novos.

A exigência de produtividade é um estímulo ao status quo, muitas vezes negligenciando o senso crítico, a criatividade, a iniciativa e a inovação, pois inovar, empreender, criar e fugir do normal pode ser perigoso; portanto, não é desejável, e, certamente, o mais seguro é fazer “o mesmo”. Foi nesse contexto que a normose acadêmica penetrou nas universidades.

Para o sociólogo Émile Durkheim, numa analogia aos organismos biológicos, é importante identificar saúde e doença em termos dos fatos sociais: saúde se reconhece pela perfeita adaptação do organismo ao seu meio, e doença é tudo o que perturba essa adaptação. Será que somos todos normóticos? A normose tem feito naufragar o pensamento criativo e a iniciativa para o novo?

Considerações finais

A normose, ou anomalias da normalidade, também conhecida como esquizofrenia moderna, atinge várias especificidades na sociedade. Há os que convivem com a normose alimentar, de consumo, cancerígena, de fantasia da separatividade, belígera (a chamada guerra justa), escolar, acadêmica, etc.

O número de normoses é muito grande, e há várias delas em áreas diversas. É importante refletir que só nos damos conta de que existe a normose quando conhecemos o seu alcance. O próprio conceito se comporta como um revelador, facilitando assim a tomada de consciência de aspectos essenciais, que serão primordiais à preservação da nossa saúde e à nossa existência.

Há uma crença bastante enraizada de que a maioria das pessoas pensa, sente, acredita ou faz, e que isso deve ser considerado como normal, portanto, servirá de guia para o comportamento humano e de um verdadeiro roteiro para a educação.

No que tange à normose das práticas escolares, observa-se que, para se colocar em prática um tipo de educação que provoque criticamente a consciência do estudante, certamente ir-se-á contra alguns mitos que nos deformam. E esses mitos deformadores vêm da ideologia dominante na sociedade. No entanto, ao divergir desses mitos, desafiamos o poder dominante e começamos a sentir medo — por exemplo, o professor tem medo de perder o emprego, de perder seu status, de perder… de perder… E o medo pode ser paralisante. Para Paulo Freire, em Medo e Ousadia: Cotidiano do Professor, o medo nos faz sentir e refletir sobre a condição normótica que enfrentamos em nosso cotidiano escolar. Enquanto educador, certamente sou um sujeito político, percebo as razões pelas quais tenho medo e começo a antever as consequências desse tipo de ensino.

Paulo Freire enfatiza que a normose é complexa e constitui-se um grande desafio para quem se preocupa com a formação de professores, que está diretamente ligada à formação do sujeito, individual e coletivo, nos sistemas educacionais. É fundamental que esse formador, em suas práticas educativas, admita o enfrentamento, que abra espaço para a discussão em nossas instituições e que não permita que as escolas sejam simplesmente espaços para abrigar a patologia da normalidade, mas um local que suscite a construção da autoria de si mesmo, para se construir uma sociedade menos doentia e mais humana.

Rosangela Nieto de Albuquerque é Pós-doutora em Educação (ph.D.), doutoranda em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Linguagem, psicopedagoga clínica e institucional, gestora educacional, pedagoga, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão, coordenadora e cursos de pós-graduação em Educação e Psicologia.

Endereço eletrônico: rosangela.nieto@gmail.com.

Referências

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