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  • Foto do escritorJuliana Melo

Infância sem pressa


Pisar no freio para que a vida amorteça a cadência do viver é o maior repto do humano, que, nas últimas décadas, permitiu que a velocidade mínima alcançasse uma dimensão espantosa e viu-se instigado a correr; nessa partida, submergiu-se em caminhos homeomorfos para coexistir na aurora da era high-tech. Tanta pressa para acompanhar os passos de um planeta que se precipitou às cegas para seguir os avanços.

Como energia para prosseguir é o grande desafio, muitos se movem pelo combustível disponível no próprio meio: valores familiares, princípios religiosos, cultura e até sentimentos, que são negociados, dizimados e, nessa transação, esvaem-se, convertendo a convivência num relacionamento cada vez mais intolerante, e, por ser insaciável, o homem age impelido pela sede de ter, conquistar, e avança com tanta pretensão que se sobrepõe à própria vida.

Nesse vai e vem ininterrupto que transfigura a paisagem igualitária, os conflitos instigam as disputas num perde-ganha incessante… E, como a base da sociedade — a família — não é resguardada dessas influências, o convívio se torna cada vez mais tenso por não sobrar tempo para o próprio Eu; e como filhos estabelecem tempo específico para receber valores, momentos de contato para formar o elo do afeto, calor humano para fortalecer o respeito e, assim, edificar a identidade, muitos crescem no seio familiar como plantas no seio da terra, num processo vegetativo: sem respeito, amor… Regado a pão e água, sem o mínimo de carinho.

A partir da ausência desses ingredientes, a agressividade governa, a violência se alastra — entre irmãos, pais e filhos, esposos e esposas. Contudo, seguir adiante é o desígnio sem apreço, sem respeito pelo outro, o exclusivismo dita as regras, e o egocentrismo, a sentença: SOU EU COMIGO.

Desse estágio em diante, esposo e esposa se distanciam; e ambos, dos filhos. Ninguém ousa olhar de lado para vislumbrar, estender a mão, tocar, sentir o outro, pois não se pode perder tempo com as dores, os problemas do próximo, nem contabilizar perdas, pois esse tempo — perdido para regar a semente — pode ser o instante primoroso para encaixar uma nova conquista, investir em novos negócios; nesse ambiente de vida hidropônica, a criança cresce e chega à fase adulta sem ideais.

Essa decadência, que vem consumindo os valores da família, não é estatística de órgãos que há décadas vêm alertando a dilaceração dos valores familiares nem ficção científica, é realidade que se converteu em regra para estabelecer parâmetros aos que chegam — as crianças — e não devem perder o compasso para avançarem no mesmo ritmo. Nessa via obrigatória, a infância é cada vez mais curta.

Tais sismos fazem com que o existir pereça num ambiente que extrai da família denodos, anversos… Arrebatando pais a decretarem que os filhos cresçam cada vez mais rápido, para assim agenciarem a própria vida. Dessa forma, o crescer tem que acompanhar essa evolução — mesmo que o emocional e o psicológico se dilacerem, abram o próprio vácuo como veia de escape — e, assim, contrafazer os conflitos interpessoais.

Como não há calor humano, o humano se robotiza; e a infância se apressa para encurtar o espaço entre a fase seguinte, acercar-se da maturidade. Nesse processo precoce para crescer, crianças aprendem a se virar sozinhas em casa; há, muitas vezes, crianças cuidando de crianças, refreando o crescer homogêneo, pois conciliar desenvolvimento físico com crescimento humano é um primordial envolvimento. Os reflexos dessa realidade estão em todos os lugares: nas praças, nos parques, nos portões das escolas, onde crianças, geralmente, estão sob os cuidados de babás, e ninguém ousa questionar.

Por onde e quando começar o processo de desaceleração?

As respostas retinem como ecos dos próprios brados — mas tardios em casos críticos, como pedofilia, prostituição infantil, envolvimento com drogas, com a criminalidade, gravidez precoce —, estabelecendo um redirecionamento de emergência de olhares: familiar, para transformar o conceito de criação à base de respeito ao tempo da infância; da escola, que deve inserir valores nos conteúdos aplicados, não sobrecarregando tanto a criança com pesadas responsabilidades; e da televisão, que deve inserir na sua grade atrações que não estimulem tanto a violência, a sexualidade, o desrespeito ao outro.

Elevar a rotação da vida na infância pode ser um erro incorrigível, pois, além de interromper o ciclo da formação do caráter, da personalidade, rompe os limites da criança, destrói o brincar, que proporciona o conhecer a si mesma por meio do fazer; o crescer com o conviver. Respeitar essa regra é um ato de amor, de respeito à vida, pois essas ações repercutirão na adolescência, na juventude e na velhice do indivíduo.

Ainda há espaço para contornar, tempo para se traçar um novo percurso… Basta observarmos a vida e seguirmos as lições da semente que estabelece o seu próprio tempo. Se o lavrador ambicionar uma colheita farta, obrigatoriamente terá que semear no tempo certo, no clima propício, escolher o terreno adequado, descartar resíduos nocivos à espécie, repor nutrientes e regar dia após dia.

Com a infância, não é diferente… Por isso, é imprescindível acatar o seu tempo, pois a queima de etapas anteparará que enflore. Essa pressa a impedirá de ser criança… Todavia, ser criança sem pressa exige, além de respeito e orientação, cuidados. Como o agricultor não pode acelerar o processo de germinação da semente, pais e educadores não devem adiantar o ciclo do humano, pois, assim como a semente necessita de ser regada para abrolhar — no seu tempo —, de tratos para evitar que as ervas daninhas a sufoquem e a impeçam de crescer saudável, florir e dar frutos na estação apropriada, a infância também tem o seu ciclo — falar, andar, correr, brincar, crescer —, e, por hipótese alguma, a família pode permitir que essa fase seja consumida, exigindo ou permitindo que a criança assuma responsabilidades e papéis de gente grande.

Infância é tempo de o humano ser tão somente criança — com regras e limites. Família e escola necessitam proporcionar ambientes adequados, comportamentos específicos, para assim oferecerem espaços que promovam o crescimento humano, a aprendizagem progressiva, e não colocar um fardo nos ombros da criança por acreditar que ela tem capacidade para adicionar os nutrientes da vitória para praticar a receita de superação, servir-se desse prato e construir o próprio conhecimento.

Afinal, infância é a fase em que os pais devem plantar amor, distribuir afeto, estabelecer regras, disseminar valores e respeitar o tempo. Esse respeito consiste em não permitir que os pequenos façam o que desejam, mas ter um norte para crescerem saudáveis e conscientes, pois regras salientam reverência ao tempo da vida.

Pais necessitam entender que procriar requer planejamento, responsabilidade. Gerar filhos não é realizar um desejo de consumo em que se adentra numa loja e se obtém o último lançamento de um automóvel de luxo, que o Inmetro, para emitir uma certificação, decreta qualidade, e essa condição prevalece, pois, na era da contrafação, uma boa marca e escolher um combustível de qualidade são a garantia de um bom funcionamento.

Como pais, muitas vezes damos mais importância a produtos perecíveis em relação aos duradouros. Preocupamos em fazer as revisões do automóvel na quilometragem exata, repor os itens com peças genuínas, polir a pintura ante uma arranhadura, só abastecer em postos cujo combustível tenha o selo de qualidade… E o combustível dos nossos filhos? É filtrado para descartar os resíduos que corroem a personalidade, o caráter, e provocam desvios de comportamento… Contaminam o Eu?

O combustível da criança é extraído do “posto” família. Se esta não filtrar conteúdos, sentimentos, valores, na primeira revisão — ao se enveredar pelos caminhos da escola — se perceberão de longe as falhas, pois não demos os devidos cuidados para revisarmos no tempo certo os conteúdos que os nossos filhos assistem na televisão, buscam na Internet… As influências externas… Os jogos que estimulam a violência… Contudo, como a vida tem pressa, aceleramos além do permitido e exigimos que os nossos filhos alcançassem uma velocidade que é permitida na via de adultos e, com essas atitudes, ultrapassamos o sinal e atropelamos o que a criança tem de mais valioso: a inocência.

Essa pisada no acelerador impulsiona a vida a se enveredar pela terceira via, e esta conduz aos fracassos. E a maioria, para se esquivar, recorre à desculpa esfarrapada: Onde erramos? Não foram respeitados os sinais da criança, o seu tempo.

A partir desse tirocínio, o desafio que impulsiona o crescer, para assim proporcionar acesso aos encantos de viver, desacelera. Desobedeceu ao limite, rompeu o tempo… Quebrou-se o instante mágico, e, como viver é uma trajetória sem parada para reajustar falhas, trocar erros por acertos, todos, simplesmente todos os conceitos que estabelecem a boa formação humana, caem por terra e se convergem para o mesmo ponto: a infância.

Se não reagirmos a tempo, os filhos da televisão e dos games formarão um esquadrão de seres sem essência humana, programados para destruir, pois a inversão de papéis, a dilaceração de valores étnicos, religiosos, sociais, familiares, robotizam a ponto de institucionalizar o humano que rompa tabus para não se distanciar das tendências. E essas tendências são cada vez mais frequentes nas famílias em que pais se corrompem pagando aos filhos o preço da ausência com artifícios; e esposos, a ausência no matrimônio. Todos permitindo serem ludibriados para ostentar as aparências.

Essas influências vêm ruindo a estrutura familiar, absorvendo a candura da criança, que deixa de ser criança para acompanhar os passos de um mundo cada vez mais tenso. A sociedade transgressora suplanta valores, destroça a pureza, transformando a fase da inocência numa trajetória de abuso sexual, pedofilia e trabalho infantil, a ponto de o próprio sistema de ensino perder o norte e não saber responder a uma pergunta que há tempos ecoa por corredores e salas de aula: Como se constrói um cidadão por meio da Educação?

“Com o mesmo procedimento que se constrói um automóvel!”, responde um coerente. Exige projeto. Sua aerodinâmica e velocidade dependerão da ambição do idealizador e da sua audácia para investir em equipamentos de ponta. Pois são elas que determinarão alta ou baixa potência, muita ou pouca estabilidade e grau de conforto.

Construir um cidadão estabelece projeto — família; em seguida, o chassi para receber a lataria — uma educação sólida; os acessórios — valores culturais, religiosos, familiares —, para que a motorização — princípios que o interligue com o próprio mundo — seja movida por um combustível que o impulsione à vitória — amor —, para que, quando se enveredar pela autoestrada da vida, tenha estabilidade para transitar. Do contrário, toda a estrutura ruirá na primeira curva.

Dê preferência à infância

Transitar nessa via obrigatória estabelece capacitação e atenção máxima para trafegar num percurso que pode conduzir à vitória ou ao fracasso. Portanto, permita que a criança seja tão somente criança.

É necessário mostrar às crianças os riscos da vida e orientá-las para encará-los como desafios, procedimentos de aprendizagem, exercícios de crescimento humano… Mesmo que os tropeços, as quedas, proporcionem feridas, deixem cicatrizes, certamente ampliarão o seu olhar de mundo, de profissional, pois criança é dotada de competências para transformar travessuras e brincadeiras em momentos únicos de aprendizagem; e, esses momentos, na edificação da plataforma para crescer.

Educador, estacione, acione o alerta e dê passagem ao direito do seu aluno de ser criança… Pois ser criança é ter uma infância sem pressa… Portanto, não acelere os seus passos, ofereça um ritmo de aprendizagem no tempo próprio, para descobrir o mundo sem ter que queimar etapas; redescobrir a vida, expor-se à própria vida e, assim, encontrar a si mesma.

Em datas especiais, dê-lhe de presente conteúdos ricos em valores, brincadeiras lúdicas, e promova uma festa de respeito ao tempo da criança, para que, na fase em que acredita que pode tudo, inclusive chegar ao topo, impelida pela imaginação, a vontade de ser possa absorver nessa viagem os ingredientes que fertilizam seus sonhos. Pois a infância é mola propulsora que impele a criança a acreditar que atingir o ponto mais alto depende somente da imaginação que ganha asas, poder, e são essas iniciativas que abrem os caminhos para crescer.

Não a prive dessa viagem, pois é esse tour imaginário que a faz decolar, trafegar na calda de um sonho, se arremessar nas asas de uma fantasia… Se jogar numa aventura… E tudo que deve fazer é acompanhá-la e orientá-la, semeando nos conteúdos denodos, criando situações que proporcionem uma realidade que eduque, cujo envolvimento promova o crescimento humano… Pois tudo que a criança necessita é de liberdade para navegar no oceano do próprio aprender por não ter medo de errar, vergonha de corrigir, receio de recomeçar, errar de novo, cair, levantar e se arremessar nos desafios, sem pensar nas perdas para saciar a sede de descobertas.

Afinal, infância exige dos responsáveis prudência máxima, cuidado absoluto, por ser uma trajetória que marca a formação da personalidade, a identificação do Eu, e esse procedimento não pode ter pressa, para não atropelar um período crucial da trajetória do humano, que demarcará o seu futuro como cidadão.

Pais, permitam que seu filho seja criança proporcionando-lhe uma infância saudável, sem pressa, pois uma infância incentivada impulsiona a criança a crescer por não se acovardar ante o desconhecido… Nem refletir sobre os ímpetos chocantes para cumprir a missão de desenvolver… Deixe-a ser, para desafiar a experiência, brincar com a maturidade e, assim, fortalecer a base do afeto, do amor e da confiança.

Permita que seu filho seja criança, nem que esse ato seja sair do lugar-comum. Somente… Sei lá… Para sair da rotina… Entreter-se… Sem receio de quebrar os protocolos. Pois infância é tempo de buscar… mesmo inconsciente do que se busca, e, nessa experiência de desvendar o mundo, descobrir o outro para esvair a sua essência: sorrir para a vida… Por ser a essência da própria vida que se desabrocha, inova-se e cresce a cada descoberta.

Permita que seu filho seja criança, pois quantas vezes tivemos provas de que a pressa não nos leva ao pódio? Chegar à frente nem sempre nos garante um troféu, um posto de evidências… A corrida para a vida — ou para a morte — é de uma dimensão que a pressa nos impele a acelerar os passos, queimar fases, enveredar por atalhos, odiar mais, contender mais e amar menos… Temos tempo para abominar, tempo para contender, tempo para correr atrás de um desejo, de sentir desejos… Mas nos falta tempo para um gesto… E assim o outro é olhado de relance; as palavras são ditas pela metade, pois todos têm pressa de abordar ou de partir… De conquistar… Todos têm pressa. Pressa para replicar, julgar, condenar e nenhuma pressa para apreciar o problema do outro, como se não tivéssemos afã para amar, fazer justiça… Porque amor e justiça consistem numa pedra no caminho… Pois o abismo entre ambições e conquistas nos impele a correr e corremos, corremos… Corremos tanto que quando rompemos a linha de chegada — a velhice — apreciamos, numa travessia, cenas inusitadas de crianças brincando na chuva, jogando bola na rua, e sentimo-nos vazios, com saudade de uma infância não vivida, de uma juventude não percebida… Pois a velocidade para chegar à frente fez com que momentos não fossem compartilhados, pessoas não fossem amadas; tivemos muita pressa e pouca tenacidade. Muito pouco para doar, muita vontade para ferir e pouca felicidade… Abatidos pelo corre-corre, certificamos — sempre tarde demais — que, se tivéssemos uma infância sem pressa, certamente seríamos jovens mais pacientes, adultos mais tolerantes, educadores mais espontâneos, pais mais carinhosos e filhos com idealismos.


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